Faz séculos que o ferro está no
imaginário da humanidade como símbolo de força e engenhosidade. Das antigas
lendas celtas e da mitologia greco-romana, vieram os deuses ferreiros Goibniu e
Hefesto (ou Vulcano). Dos quadrinhos e do cinema, uma das estrelas do universo
Marvel a estampar de telas a camisetas é o cerebral Homem de Ferro. Cheios de
habilidades, esses seres com superpoderes personificam também vigor e proteção.
E é algo bem parecido com isso o que nos entrega o ferro das carnes,
dos feijões e das folhas verde-escuras.
Para além da fantasia, esse mineral é
uma das peças centrais para o organismo funcionar a pleno vapor. Só que, no
mundo real, digamos que ele não está com essa bola toda no prato do povo (veja
as fontes entre os alimentos ao longo da reportagem). Faltando
ferro, quem teima em aparecer é uma conhecida vilã, a anemia.
Pela definição da Organização
Mundial da Saúde (OMS), a condição se manifesta quando a
concentração de hemoglobina, a proteína dos glóbulos vermelhos do sangue,
fica aquém dos níveis adequados. Isso provoca desânimo, apatia,
palidez, dor de cabeça e pode comprometer o
crescimento infantil, o cérebro e a imunidade.
Embora o déficit de outros nutrientes possa
desencadear tipos diferentes de anemia, a versão ferropriva é
a mais prevalente. Como a classificação denuncia, ela acontece pela privação de
ferro. Grávidas, idosos e crianças estão entre as principais
vítimas. “A anemia continua sendo uma urgência médica”, afirma o pediatra e
nutrólogo Mauro Fisberg, diretor do Centro de
Dificuldades Alimentares do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo.
O especialista é um dos autores de um consenso
sobre a doença elaborado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). No documento recém-atualizado, ganha ênfase a prevenção do quadro
desde cedo. “O estímulo ao aleitamento materno exclusivo até os 6 meses e a atenção
especial na fase da alimentação complementar, marcada pela introdução de comida
sólida, são primordiais”, destaca Fisberg.
Também professor da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), o médico acompanha a evolução nutricional da garotada há
algumas décadas e observa uma queda na incidência geral do problema. “Políticas
públicas, como a de enriquecimento de farinhas, além de suplementação
profilática para gestantes e bebês, têm ajudado, mas a situação ainda é muito
preocupante”, avalia.
Pois uma nova revisão de estudos, coordenada pelo pediatra e nutrólogo Carlos
Alberto Nogueira de Almeida, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
revela que 33% dos brasileirinhos apresentam anemia ferropriva.
Para chegar a esse dado, o professor e equipe analisaram 134 pesquisas, feitas
entre 2007 e 2020, somando dados de um total de 46 978 meninos e meninas de até
7 anos de idade. “Os números são altos em todas as regiões do país e reforçam a
importância de adotar estratégias para frear o problema”, conclui Almeida.
O primeiro passo é não deixar que falte ferro já no
período do pré-natal para suprir necessidades da mamãe e do
bebê. “Mas, infelizmente, durante a pandemia, observamos uma baixa nas visitas
das gestantes aos consultórios”, observa o médico.
Para piorar, a crise da Covid-19 também
tem prejudicado o estado nutricional de muita gente. Apesar de o planeta estar
cada vez mais inflado pela obesidade,
nem sempre a comida é de qualidade, privando o corpo de substâncias vitais como
vitaminas e minerais.
“As deficiências tendem a surgir em todas as faixas
de idade”, nota Glaucia Pastore, professora da Faculdade de Engenharia de Alimentos
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O drama é que as
repercussões da anemia chegam a se arrastar pela vida.
“Crianças podem ter danos cognitivos que se
refletem no desempenho escolar. Assim, indivíduos que seriam gênios acabam não
atingindo todo o seu potencial”, lamenta Almeida. É a carência de ferro levando
consigo mentes brilhantes.
Problema preocupante
Em uma pesquisa com mais de 6 mil pessoas de 11
países da América Latina, a Health & Wellness 2021, a anemia figurou como
uma das maiores preocupações do público, segundo a nutricionista Maria Fernanda
Elias, gerente de comunicação da DSM, empresa
holandesa de ingredientes responsável pelo levantamento.
Cansaço e
falta de energia também foram mencionados pelos participantes do estudo, que buscou
entender a saúde física e mental dos latino-americanos em tempos de pandemia.
Neste período particularmente turbulento, ganhou
evidência um dos papéis prestigiados do ferro, o de reforço à imunidade.
“O mineral atua no organismo em reações químicas necessárias para a destruição
de patógenos e é importante para a produção das nossas células de defesa”,
expõe a nutricionista Bruna Nogueira, consultora da Jasmine
Alimentos.
A lista de atribuições da substância é extensa. A
função mais conhecida é provavelmente a de ajudar a transportar
oxigênio pelo sangue pelas já citadas hemoglobinas. Daí a pasmaceira
quando some o nutriente. Outra atuação de renome se dá no cérebro, onde o ferro
participa da fabricação de neurotransmissores que regulam o humor e
a sensação de bem-estar.
Só por essas duas facetas já dá para entender por
que a carência pode comprometer a memória e
outras habilidades cognitivas. “Fadiga, pouca concentração, irritabilidade
e dor de cabeça são alguns dos sintomas da deficiência”, enumera a
nutricionista Gabriela Parise, da clínica
NutriOffice, na capital paulista.
Embora o micronutriente seja indispensável em todas
as idades e etapas da vida, alguns perfis e fases pedem maior cuidado com o
consumo e o aproveitamento pelo corpo. “Além das crianças, gestantes, idosos e
pessoas que seguem dietas restritivas precisam de um olhar cauteloso”, ressalta
a nutricionista Maísa Mota Antunes, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Eles pedem mais atenção
Alguns grupos estão mais suscetíveis
à deficiência de ferro no organismo
+ Bebês e crianças: nos primeiros
anos, durante a fase de desenvolvimento acelerado, ocorre um aumento nas
demandas pelo mineral, muitas vezes suplementado.
+ Gestantes: o nutriente
é crucial para a formação de tecidos e órgãos do bebê. Sem contar o aumento no
volume de sangue e as funções no corpo materno.
+ Idosos: quem tem mais
de 65 anos pode apresentar carências, sobretudo se há problemas que prejudicam
o consumo ou a absorção das fontes de ferro.
+ Veganos: como o ferro
dos vegetais tem uma taxa de aproveitamento mais baixa que o das carnes, é
importante recorrer à orientação nutricional.
Diagnóstico preventivo
Para bater o martelo sobre o déficit do mineral,
costumam ser pedidos exames de sangue, que delatam a anemia a
partir da análise de proteínas como a hemoglobina e a ferritina.
“Mas é importante já estar atento aos estágios
anteriores à anemia em si, e podemos fazer isso melhorando o acompanhamento e o
controle sobretudo das populações mais vulneráveis”, recomenda o nutricionista
Eduardo De Carli, pós-doutorando na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Em algumas situações, aliás, o ferro do prato não é
suficiente para conter ou reverter a ameaça — e, aí, a saída é suplementar mesmo.
Tal providência durante a gravidez,
por exemplo, faz parte das diretrizes mais modernas. É que, na gestação, há um
incremento no volume de sangue no organismo e boas doses de ferro são
requisitadas para a placenta, órgão vital ao desenvolvimento do bebê — o uso
das cápsulas costuma se estender na fase da amamentação.
“Mulheres com fluxo menstrual intenso também podem
estar no grupo de risco para deficiência”, observa Maria Fernanda. Assim
como veganos e doadores habituais de sangue.
Descobertas mais recentes incluem na lista de maior exposição à anemia pessoas
com obesidade e doenças inflamatórias crônicas.
Tem tudo a ver com um mecanismo de defesa do corpo,
uma vez que alguns agentes infecciosos são ávidos por ferro. Quando há inflamação,
um sinal de alerta no organismo, ocorre uma reação para regular o uso do
mineral. “Assim, as reservas não são mobilizadas e a absorção intestinal
diminui, fazendo com que o micronutriente deixe de ser aproveitado”, descreve
De Carli. No meio da bagunça, a preciosa substância acaba desperdiçada.
Por falar na assimilação do ferro, zelar pelo intestino e
a microbiota é outra condição básica para esse e outros
nutrientes ganharem a circulação e tomarem o rumo certo. Daí que frutas,
hortaliças e probióticos são atores coadjuvantes nessa história.
Virando o jogo contra a anemia
O plano de combate à anemia passa por escolhas
individuais mas também estratégias coletivas, que incluem políticas
públicas voltadas a alimentação saudável e suplementação em grupos de
risco e fortificação de alimentos pela indústria.
“Um dos desafios nesse sentido é encontrar o ferro
em um formato biodisponível e que não altere as características do produto,
além de ser isento de gosto”, contextualiza Melissa Carpi, engenheira de
alimentos da Jasmine.
Mas a parte mais saborosa do enredo é a das táticas
à mesa mesmo. Ainda que feijões,
folhas verde-escuras e sementes ofereçam ferro, sua biodisponibilidade —
isto é, a capacidade de ele ser aproveitado — é menor quando comparada à de
fontes animais.
Isso se deve ao fato de os vegetais contarem com
ferro não heme, enquanto as carnes oferecem o tipo heme, molecularmente mais
adequado ao processamento pelo organismo. A chave para alcançar as
recomendações com equilíbrio é a variedade no menu.
Alguns macetes, é verdade, favorecem o
aproveitamento do ferro vegetal. Tostar castanhas reduz
os compostos que dificultam a absorção do mineral. Pelo mesmo motivo, verduras
como espinafre devem ser cozidas — só cabe ponderar que a
hortaliça que alçou fama com Popeye não apresenta altas doses da substância.
Outro alimento sempre lembrado, talvez pela cor, é
a beterraba, mas, ainda que seja supernutritiva, perde feio para os feijões em
matéria de anemia.
Sobre a família das leguminosas, um ensinamento
clássico e valioso é o remolho. A sugestão é deixá-las na água por
pelo menos oito horas antes de mandar à panela. Boa pedida para podar fatores
antinutricionais e ficar com o ferro e o que mais importa. Outra sacada para
captar o mineral é combinar vegetais ferrosos com os fornecedores de vitamina
C — a famosa laranja da feijoada.
Na contramão, a ingestão simultânea de café ou cálcio
dos laticínios atrapalha a arrecadação da substância. É tudo química,
e, dependendo da necessidade, entender e aplicar alguns dos seus truques é um
jeito esperto de não deixar o ferro faltar.
O dedo dos genes
Para além das inadequações na dieta, fatores
genéticos podem explicar a eficácia na absorção do ferro, assim como seu
aproveitamento e o estoque nas células. A talassemia e a doença
falciforme são alguns dos exemplos de males marcados por alterações
prejudiciais nos glóbulos vermelhos.
E tem uma condição que seria o oposto da anemia,
a hemocromatose hereditária. Ela provoca acúmulo de ferro, o que
pode lesar órgãos como fígado e cérebro. Hemogramas ajudam a flagrar o
problema, tratado com ajustes no cardápio e doações de sangue.
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